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sexta-feira, 30 de maio de 2014

ASSUNTO DE HOMENS
Ridendo castigat mores
Crônica de Judith Nogueira.

Tenho uma dificuldade muito grande para ver criança sofrer. Todos nós temos o nosso ponto fraco, e esse é um dos meus. Nunca me incomodou atender quem quer que fosse, estivesse sujo, embriagado, malcheiroso, vomitado. Não tenho nojo do corpo humano e sempre me acostumei facilmente com esse aspecto menos glamouroso da nossa condição física.
Quando eu era ainda uma estudante do quinto e do sexto ano da faculdade de medicina, não me incomodava por fazer suturas na boca dos alcoolizados que caiam na rua e eram levados para o Pronto-Socorro. Alguns colegas ficavam espantados e diziam:
— Como é que você consegue aguentar esse hálito horroroso?
E eu sempre respondia:
— Meu olfato é péssimo! Quase não sinto o cheiro dessas coisas que enojam a maioria das pessoas. Duro mesmo seria trabalhar na pediatria! Aí, sim, seria sofrimento para mim.
Atender criança doente, com os pais sofrendo, ansiosos, é demais para mim, por isso nunca pensei em fazer especialização em pediatria. Sempre achei que criança nunca deveria ficar doente, que deveria ter uma idade mínima para isso, por exemplo, 18 anos.
Não que o sofrimento dos adultos seja aceitável, mas o das crianças me deixa para morrer, me desmonta. Aquelas criaturas tão pequenas, tão ignorantes da vida, tendo que lidar com situações de dor, de desconforto, de perda...
Curiosamente, mesmo evitando essa especialidade, as crianças acabam sempre por cruzar meu caminho profissional, como aconteceu há 25 anos, durante uma manhã de trabalho como médica residente de cirurgia. Nesse dia, quando cheguei para o plantão no Pronto-Socorro, meus colegas contaram sobre o menino de 12 anos que chegou à noite, com a mão e o antebraço direitos esmagados e ainda presos a uma máquina de moer carne. O garoto trabalhava em um açougue e sofreu o acidente lamentável. Como não foi possível aos bombeiros retirarem seu braço da máquina, levaram-no ainda preso ao moedor, que teve que ser retirado no centro cirúrgico, após a anestesia do menino.
A mão e parte do antebraço já estavam completamente destruídos pela trituração, de modo que não houve outro recurso senão concluir a amputação do membro já perdido.
Ainda sem ver o paciente, fiquei muito chocada com a história. Quando entrei no Centro Cirúrgico para uma outra operação, vi o garoto na sala de recuperação pós-anestésica, deitado na cama, com o coto do antebraço enfaixado e chorando muito. Estava assustado, chocado, arrasado, tudo junto. Não falei nada, pois não havia o que falar. Uma das funcionárias, no intuito de distrair o menino, fez um estúpido e grosseiro que eu me recuso a repetir aqui, embora me lembre de todas as suas palavras. Se a palavra é prata, o silêncio é ouro. Melhor não perder a chance de ficar de boca calada.
De qualquer modo, ele não era meu paciente e foi para uma enfermaria na qual eu não estava atuando naquele mês, mas a sua história não me saiu da cabeça, nem a imagem do seu choro desesperado naquela manhã terrível. Eu imaginava o que estaria pensando a respeito de seu futuro, se estava com medo, com vergonha. Dali para frente, sua vida seria diferente em vários aspectos, e que ninguém venha com conversas politicamente corretas de que a vida dele continua igual, de que pode se adaptar, que pode ser igual aos outros.
A adolescência já é suficientemente difícil para quem tem as duas mãos, os dois olhos, as duas pernas. A criança que está entrando na idade adulta ainda tem muitas inseguranças acerca da aparência, mesmo quando ela é perfeita!
Fiquei pensando como um segundo pode mudar completamente o curso futuro de nossas vidas. Para o garoto em questão, foi um segundo de distração e a vida toda sem mão.
Acompanhei o caso à distância, até que soube que o paciente tivera alta. Quis saber como ele estava quando saiu, se estava melhor, se chorou muito e assim por diante.
Meu colega de residência contou-me que ele estava com mais vergonha do que tristeza. Estava mais preocupado com os colegas de escola, temendo que rissem dele, que se tornasse alvo de caçoada. Naquele tempo ainda não usávamos a palavra Bulling, mas a coisa em si já existia, embora em menor proporção.
Fiquei muito triste por isso e perguntei qual foi a conduta do colega que deu a alta no sentido de amenizar a angústia do jovem. Para minha surpresa, meu colega apenas respondeu:
— Ele disse para o menino: “Não ligue, não. Se te zoarem você fala que perdeu a mão, mas não o pinto. O pinto tá aqui, ó!”
Durante alguns segundos eu fiquei horrorizada! E a ética médica? Onde já se viu falar assim com um paciente, ainda mais um menor? Perguntei qual foi a reação do garoto e meu colega informou que ele caiu na risada e foi embora sorrindo...
Fiquei perplexa. Lembrem-se que éramos todos jovens de vinte e poucos anos, eu ainda com questões rígidas acerca da ética e de como falar com o paciente. Lembrem-se também de que eu sou mulher e meus colegas são homens, assim como o paciente. Jamais passaria pela minha cabeça falar assim com alguém, mas às vezes só a seriedade e a compaixão não resolvem.
Há coisas que só as pessoas do mesmo sexo conseguem entender.
Até hoje, 25 anos depois, mesmo com toda a experiência que adquiri, creio que não saberia me sair tão bem de uma situação como aquela. Eu não saberia como falar com graça a um adolescente em tal situação. Se fosse uma mulher a falar aquilo, provavelmente ele ficaria muito constrangido.
Essa situação é um perfeito exemplo daquele ditado em latim, “Ridendo castigat mores”, que pode ser traduzido por “rindo mudamos os costumes”.

Só para terminar, ainda bem que somos tão diferentes. O que seria de nós sem os outros?

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